Carlos Iglézias
Presidente da APEMETA
Associação Portuguesa de Empresas de Tecnologias Ambientais
Inteligência artificial “pode ser particularmente útil na gestão de infraestruturas”
Os desafios tecnológicos na gestão da água e o papel que pode ter a inteligência artificial são temas de uma entrevista com Carlos Iglézias, Presidente da APEMETA. Falamos ainda das oportunidades do Plano de Resiliência e Recuperação (PRR), dos objetivos da associação e da sua participação na ENERH2O, entre outros temas.
Com períodos de seca cada vez mais comuns e de longa duração torna-se indispensável gerir eficazmente os recursos hídricos. Quais são os principais desafios tecnológicos que se colocam à gestão da água em Portugal?
Carlos Iglézias (CI): O desenvolvimento, e sobretudo a sua aplicação prática, de soluções que permitam a redução das perdas na armazenagem e distribuição, a redução dos consumos energéticos associados à distribuição e a monitorização da utilização são questões que deverão, cada vez mais, ser objeto de investimento na procura de respostas à redução das perdas e ao combate ao consumo indevido.
O conhecimento das redes, e neste conhecimento incluo não só o conhecimento de meios materiais, mas também dos seus utilizadores/beneficiários, e a sua monitorização é fundamental para uma operação eficiente. Neste contexto, a Inteligência Artificial tem espaço de aplicação que a escassez do recurso água, face às necessidades crescentes, vai viabilizar.
A gestão hídrica e as energias renováveis fazem parte do PRR. Acha que existe uma visão verdadeiramente estratégica para esta área?
CI: Portugal, membro da União Europeia (UE), tem objetivos claros relativamente às metas e indicadores a alcançar no curto e médio prazo. O PRR prevê 390 milhões de euros para a gestão hídrica, dos quais 200 milhões só para o plano regional de eficiência hídrica do Algarve, região particularmente afetada pela redução da precipitação média anual. Nas energias renováveis, que inclui o hidrogénio verde, estão previstos investimentos no valor de 370 M€.
São valores enormes que, se concretizados, terão enorme impacto nos respetivos indicadores que, para além dos definidos pela UE, o governo definiu como estratégia de valorização dos recursos naturais que temos à disposição, mar, sol e vento. A grande questão, que será respondida no curto prazo, com o encerramento do PRR, é saber se Portugal consegue realizar estes investimentos nos valores e prazos previstos.
Quais as oportunidades e que expetativas tem do PRR para o setor?
CI: Como já amplamente divulgado, os grandes projetos e respetivos apoios estão dirigidos a entidades públicas, beneficiando as empresas privadas ativas nestes setores dos contratos que conseguirem firmar, à luz do código de contratação pública, em concorrência direta com empresas estrangeiras, que ultrapassam muitas vezes as empresas portuguesas, ficando as empresas portuguesas como subcontratadas.
É certo que com os anunciados apoios financeiros, associados às áreas da descarbonização da indústria e eficiência energética em edifícios, se sentiu uma maior atividade nas empresas ativas nestas áreas, fruto dos apoios financeiros disponíveis e do impacto imediato na redução das faturas de energia, que aumentaram brutalmente durante o ano de 2022 por razões conhecidas, pese embora o atraso na comunicação das decisões sobre cada uma das candidaturas e da receção dos apoios financeiros em caso de aprovação por parte do Fundo Ambiental.
Nos últimos anos, a água passou a ser vista como um produto financeiro. O que pensa deste recurso ser negociado como commodity?
CI: A mercantilização da água é um passo sobre o qual deveremos refletir profundamente, onde, como e quando. É um bem essencial à vida, como o ar que respiramos, e incontornável na agricultura, porque essencial, como o é também na indústria, nas florestas, nas atividades de lazer. A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, adotada por todos os Estados-Membros das Nações Unidas em 2015, e que entrou oficialmente em vigor em 2016, define as prioridades e aspirações do desenvolvimento sustentável global para 2030 e um destes objetivos, o sexto, é “água potável e saneamento”.
Este objetivo, acesso a água potável e saneamento, é um dos pilares considerados imprescindíveis para o desenvolvimento sustentável da população mundial e como tal, à luz da Carta das Nações Unidas, um direito. Tenho enormes dúvidas como este direito coincide com o conceito deste recurso ser negociado como commodity, no seu todo, uma coisa é a necessária sustentabilidade deste recurso e a sua valorização e outra a mercantilização associada ao conceito de commodity para tudo e todos.
Fala-se cada vez mais de Inteligência Artificial e da sua influência em várias atividades. De que forma pode ser aplicada pelas empresas de tecnologias ambientais?
CI: A Inteligência Artificial é uma ferramenta que pode ser particularmente útil na gestão de infraestruturas, pela rapidez com que pode sugerir ou mesmo acionar medidas mitigadoras ou preventivas de ações ou atividades que ponham em causa o bom funcionamento das mesmas. A sua aplicação e o valor que poderá acrescentar depende do conhecimento das infraestruturas e/ou âmbitos de intervenção. Sem conhecimento e medição não é possível gerir, e a aplicação da Inteligência Artificial está dependente do conhecimento prévio, a partir do qual extrapola ações que por sua vez irão constituir acervo para futuras ações, constituindo um ciclo, que se pretende virtuoso, suportado em conhecimento, de ações e impacto das mesmas.
Olhemos para a APEMETA, que existe há mais de 30 anos. Quais são os seus principais objetivos?
CI: A APEMETA é uma associação sem fins lucrativos, com estatuto de utilidade pública e de organização não governamental de ambiente, constituída com o objetivo de promover a análise, o estudo e o desenvolvimento de ações que visem a defesa do ambiente e, simultaneamente, proporcionar o desenvolvimento dos associados nesta área.
Como se formaliza no dia a dia este objetivo? Promovendo a recolha, desenvolvimento, permuta e divulgação de conhecimentos e experiências na área do ambiente, através de ações de consultoria, formação, seminários, encontros empresariais, missões no estrangeiro e reversas, onde participam stakeholders estrangeiros que vêm conhecer realidades e competências de realização portuguesas que podem ser reproduzidas em outras geografias, criando redes com associações congéneres pelos cinco continentes, que facilitem o conhecimento de mercados e o respetivo acesso às empresas portuguesas.
A informação de mercados externos e coletâneas de legislação ambiental de diversos países faz parte do acervo documental da associação e está disponível para as empresas interessadas.
Visitem-nos em www.apemeta.pt onde poderão encontrar a informação disponível à distância de um clique.
A associação representa mais de 200 empresas. Fale-nos um pouco das associadas e das suas atuais preocupações?
CI: As empresas associadas da APEMETA ativas nos setores do ambiente, resíduos, energia e águas, algumas cobrindo todos estes setores, são maioritariamente PME, que atualmente estão particularmente preocupadas com o atual atraso do “Portugal 2030” e com a evolução dos valores da inflação.
Não podemos esquecer que este programa plurianual de apoio, que fixou os grandes objetivos estratégicos para aplicação entre 2021 e 2027, com o montante global de 23 mil milhões de euros, parte dos quais, através dos Programa Temático Compete 2030 e Regionais destinados ao apoio ao investimento produtivo e internacionalização do setor empresarial, só em maio de 2023 publicou os primeiros avisos que permitirão às empresas candidatar-se aos apoios financeiros.
Este atraso refletiu-se negativamente em muitos investimentos, que foram adiados por falta de liquidez financeira das empresas, que sofreram dificuldades emergentes do combate à situação epidemiológica COVID-19, em 2020 e 2021, e da invasão pelo exército russo da Ucrânia, em fevereiro de 2022, com enormes consequências no custo e disponibilidade de matérias-primas, componentes e energia.
De que forma estas preocupações estão relacionadas com a necessidade de alterações regulamentares e quais as exigências da APEMETA perante os legisladores e o Governo?
CI: As preocupações com o “arranque” do Portugal 2030 e a inflação são reais e o que o setor empresarial anseia é o rápido arranque dos diversos programas dirigidos ao setor empresarial e o cumprimento dos prazos previstos na legislação e avisos já publicados, sendo incontornável, para que isso aconteça, que as diversas equipas executivas dos programas financiadores sejam providas dos necessários meios técnicos e humanos.
Quanto ao problema da inflação, estamos conscientes que o grau de dependência de fornecimentos externos na atividade do setor é relevante e que a inflação importada só pode ser combatida com inovação e melhoria de produtividade, o que nos exige investimento, que estou certo merecerá o apoio do Portugal 2030.
A APEMETA vai estar na ENERH2O 2023. Como será a sua participação na feira?
CI: Estaremos presentes com um stand e, no contexto deste evento, a 28 de setembro, promoveremos o workshop ”Water2Business”. Cremos que será mais um contributo para a dinamização do setor e de atração deste evento.
Em que medida eventos como a ENERH2O são necessários e podem contribuir para o setor?
CI: Este evento ao proporcionar o encontro direto entre os diversos atores que constituem o universo água e energia, como outros com objetivos semelhantes, contarão sempre com o apoio da APEMETA, por se inserirem nos objetivos estatutários da associação de promover a divulgação do conhecimento e tecnologias nas áreas do ambiente e energia.
É importante criar espaços de debate e de encontro entre a oferta e a procura, que dinamizem o mercado e, sobretudo, a rápida resposta aos desafios que são colocados pelas alterações climáticas e, simultaneamente, pela sustentabilidade das soluções.